Desde o lançamento de Golem, em 2018, que 33EMYBW irrompeu pelo universo de eletrónica de vanguarda sem forma de ser travada, algo que só validaria com Anthropods e mais recentemente com Holes of Sinian. Uma das principais artistas da super-editora do Extremo Oriente SVBKVLT, foi um dos principais nomes a colocar as novas expressões artísticas chinesas no mapa e a garantir que nunca sairia de lá. A sua sonoridade, uma mutação harmoniosamente disforme de eletrónica experimental de batidas recordas, baixos protuberantes e melodias originárias de latitudes ainda não descobertas deste lado do mundo, mas que 33EMYBW domina gloriosamente, elevando-a com elementos texturizados que lhes dão uma vida visual que não sabíamos possível. Ao Mucho Flow virá com o artista visual Joey Holder, que dá vida ao que imaginamos ser o som da produtora de Shanghai. Será um verdadeiro assalto sensorial, preparem-se.
Americano radicado em Berlim, a música de Alex Wilcox consegue derrubar a sobranceria germânica com uma boa dose de humor clínico, que desarma caras atravancadas e pernas trancadas. Com toda a seriedade, os seus club bangers acertam com batidas aceleradas, contratempos bem engendrados, sintetizadores bamboleantes e cheios, e apontamentos melódicos ou detalhes de produção que não procuram a aceitam, apenas a afirmação. Toda a sua música é performance, executada com excelência técnica; a sua performance não ficará atrás, mas temos sorte: são precisos menos músculos para sorrir do que para franzir a testa.
A coabitação do folk e do folclore parecia um lugar certo, até que a voz, grave e de timbre atípico, entrou em cena — a cantautora e artista multidisciplinar, ainda a entrar nos seus 20s, já apresentou vários novos paradigmas para o que a expressão folk pode ser hoje, e abriu novos caminhos para o que pode ser amanhã. A simplicidade melódica abre caminho para a projeção incontida da sua voz, que dramatiza o espaço e lhe dá uma profundidade além da estereofonia, acrescentando características às suas composições que caberiam numa pauta apenas congeminada por Stockhausen. Não é por acaso que a Jagjagwar meteu muitas fichas no seu longa-duração debutante, e não será uma surpresa se a sala vimaranense que a receber for projetadas para novas dimensões; mais do que provocar comoção, a sua música transforma espaços.
O nome Angry Blackmen (ABM) é auto-explicativo, apesar de os próprios o definirem como um truque de retórica. O som encapsula a ideia que a dita América branca espera de um certo tom de pele, uma tensão constante, embrulhada em frequências graves e protuberantes e batidas quebradas, a piscar o olho às cadências hip hop de andamento mais elevado, estrategicamente a desviar-se do trap sem se a aproximar do grime, mas é no conceito que a dupla de Chicago eleva a parada. No seu rap entra uma consciência informada por condição, fazendo uso de arquétipos para contar histórias que ultrapassam esses limites. Tem sido assim desde que se fizeram à estrada em 2017, e não é menos verdade com o novo álbum, “The Legend of ABM”, que trazem em estreia nacional até ao Mucho Flow. Esperem noise, esperem o irascível, esperem o inesperado.
Basspunk
Bianca Scout move-se entre géneros e ocupa espaços inusitados, mas fá-lo com uma familiaridade reconfortante, criando novos contextos sonoros onde a eletrónica de tendências mais experiemntais, a pop e a música de câmara coabitam com expressões de dança contemporânea. A sua exploração, que começou há quase uma década em Londres, encontrou em “Pattern Damage”, o seu último álbum recentemente editado, a sua forma mais solene e embevecedora, com peças de melodias de aparente fragilidade, mas que rapidamente passam a assolar todo e qualquer canto da mente, preenchendo-os com tristeza e encanto.
Com uma ascendência a pesar de forma inolvidável na sua música, a escocesa Clarissa Connelly tem explorado a tensão nórdica-celta do norte da grã-bretanha através da sua música, não se coibindo de lhe dedicar motivos líricos fortes, com fortes influências nas progressões harmónicas que explora ao piano. Em 2024, Connelly regressa com um selo Warp, onde em World of Work eleva aquilo que podiam ser pequenas canções para enormes delírios pop, preenchidas com eletrónica, e onde a sua voz, que bebe na tradição, se expande, estende, desenrola e se envolve com uma dinâmica ímpar. Não há linearidade que perturbe a aventura que é o seu novo LP, onde cabe, de facto, um mundo.
Um dos nomes em crescendo do clubbing, Christele Oyiri, mais conhecida por Crystallmess, vem preencher a lacuna que o Mucho Flow só soube que tinha quando se cruzou com os seus sets. Neles cabem um milhão de revoluções, cadências e estéticas, que vão do house ao drum n bass, passando por tendências de expressão africana contemporânea, e onde a tendência prevalente é uma certa aura soul em choque com a ideia techno, afro-futurista original, permanente, perfeita para projetar espíritos para pistas de dança tão espirituais como físicas. Enquanto houver pernas, Crystallmess sustenta-nos a alma; quando as não houver, ela energiza-nos o corpo.
Futebol sem bola, coelho sem cartola, piano sem teclas, eletrónica sem eletricidade… seria o Mucho Flow sem DJ Lynce. Como o Mucho se mantém muito Flow, também DJ Lynce está de volta a Guimarães e com a certeza de que não é de memórias que se faz um set inesquecível. Vamo-nos lembrar de Lynce não porque carregamos o que ele fez, mas porque o que quer que aí venha vem com a qualidade inabalável de quem tem a sua capacidade camaleónica de se adaptar a qualquer alinhamento e a aptidão hipnótica de nos levar aonde as pernas melhor mexem. Resumindo: DJ Lynce está de volta, na verdade nunca se foi embora, e já vive sem pagar renda nas memórias que ainda não temos do que vai fazer em Guimarães. As palavras-chave são simples, os seus efeitos nem tanto: rave inspirada nos sons do UK, batidas quebradas, acidez elevada, baixos físicos, andamentos alucinantes.
Auto-descritos como um encontro entre Brian Wilson e Death Grips, o jovem grupo britânico Ebbb já está a reclamar espaço que ignorávamos existir — nomeadamente aquele que está entre os Beach Boys e a agressividade eletrónica do grupo que tanto faz hip hop como death metal. Nesse espaço, alguma beatitude melódica, e harmonias saturadas a um limite de cor confrontam-se com uma eletrónica tangente ao clubbing, numa espécie de pastoral infernal que se pensaria impossível. Quando pensarem que os extremos se tocam, é no som de Ebbb que ouvimos essa ideia a concretizar-se.
Embrulhado num turbilhão de nostalgia e projeção futurista, Florence Sinclair habita as coordenadas de espaço tempo emergentes da confluência entre as waves todas do início da década de 2010 com o indelével estabelecimento das sonoridades negras como o padrão da pop. O resultado, meio inexplicável, mas sempre reconhecível, desemboca numa música tão fluída quanto confrangedora, liberta na sua forma de estar contida; uma pop que usurpa a canção para fazer melodias orelhudas e não se socorrer de fórmulas óbvias. A experimentação, aqui, não se queda pela mera estética, dedica-se a explorar a fórmula e as suas possibilidades. Mais uma estreia a expandir o universo observável do Mucho Flow.
Há um equilíbrio frágil na música de FRANKIE, que aceita tanto o padrão de beleza do instrumento erudito como a mutabilidade bruta e quasi-científica das modulações digitalizadas. Entre a organicidade do som de piano, de cordas e da sua voz, existem elementos intrusivos que parecem assombrar momentos de acalmia. O resultado é desestabilizador, criando um desconforto atraente, que nos prende e garante que não é a letargia que vai tomar conta de nós, mas sim a sua voz rouca e as expressões melódicas a que se sobrepõe. Pernas vão falhar — é assim o encantamento de FRANKIE.
O que começou por ser um projeto meramente arquivista e de curadoria acabou por se tornar arte viva em Gabber Eleganza, nome assumido pelo agora produtor italiano Alberto Guerrini. Atenções focadas nas linguagens post-rave, sur-180bpms, das batidas tão hiper-saturadas que redundam em reverberação ruidosa, o conhecimento enciclopédico sobre as fórmulas revelaram novas combinações algébricas para resolver as tensões acumuladas durante anos de pistas de dança pisoteadas. Sem recorrer ao lugar comum da velocidade pela velocidade, a sensação de gravidade é em tudo semelhante na manipulação de sons que o italiano executa. O resultado, poderão ver, é uma tradução judicialmente criada das cenas mais hardcore da Europa central adaptada a todo o bom amante de pistas de dança.
Enquanto o mundo descobre a Coreia, alguns dos seus artistas descobrem mundos novos. Exemplo disso é o duo Hypnosis Therapy, que olha para a música clubbing como um portal para uma dimensão própria, que os próprios dominam e moldam na medida que lhes convém, selecionando para a sua banda sonora as características que melhor definem o seu habitat. O resultado é uma mistura ensandecida de bass music, com rap, deconstruct club, punk e todas as frequências que vibram entre os vários comprimentos de onda, boa ou má. Fundados em 2022, já assinaram um par de registos longa-duração e outros tantos EPs, que vão percorrer no Mucho Flow. Um vislumbre de viver noutro lado a partir de Guimarães.
Não é por acaso que a palavra mara mandíbula aparece no nome de Jawnino — o londrino não debita dá ponto sem nó no uso da palavra, nem se movimenta sobre o beat sem a dicção certa para lhe dar o toque de tenacidade mordaz que ele pede. A isso, claro, acresce todo o ambiente da capital inglesa, que transpira nas músicas do rapper, que tanto soa a grime, como ecoa às origens do género, seja mais garage, mais jungle, ou algo ainda mais pejado de betão, névoa e chuva. Entre malhas tecidas a disforia eletrónica, alguma nostalgia tecnologicamente atualizada, Jawnino soa a um portal entre ontem e amanhã.
Depois de ganhar espaço num lugar relativamente comum aos seus pares da música erudita, a compositora, violoncelista, produtora e vocalista Mabe Pratti começou a abrir caminho para uma sonoridade de cunho muito próprio, sendo a epítome disso mesmo o mais recente álbum “Sentir Que No Sabes”. Ao longo da sua carreira procurou explorar as possibilidades do violoncelo como principal propulsor de sonoridades ambient e clássicas, num registo ambient a aproximar-se da pop, tendo recentemente rompido com essa direção. A compositora da América Central vive a sua designação na máxima aceção, criando peças para contextos maiores do que apenas o seu instrumento, onde a pop abraça tanto a clássica, como expressões mais próximas do rock, do ambient, da chansons, com momentos melódicos de beleza inquestionável, onde violoncelo, piano, sopros e bateria produzem uma banda sonora de vida.
Nadah El Shazly já é vista com senioridade na cena musical egípcia mais vanguardista e agora começa a colher em todo o mundo os louros dessa condição, que conquistou graças à sua capacidade de injetar vida nova no cantar tradicional egípcio. Depois de se ter lançado a solo em 2017, El Shazly rapidamente cativou o seu lugar junto da nata de instrumentistas arrojados do Cairo, tendo em 2020 integrado o super coletivo Praed Orchestra juntamente com os seus pares Sam Shalabi, Maurice Louca e Alan Bishop. Neste ano, a vocalista e compositora continua a abrir caminhos entre a tradição, a contemporaneidade e o futuro da sonoridade do vale do Nilo com um novo projeto em colaboração com a homóloga Elvin Brandhi, em Pollution Orchestra (com selo de qualidade Danse Noir, da mesma Aisha Devi que nos fez flutuar em 2023), e com uma nova banda sonora. Preparem essas espinhas, espera-se um concerto arrepiante.
Um caso de a casa o bom filho torna, o trio punk com toques de pós Papaya estreará o próximo álbum, Nove / IX, selado, como sempre, pela mesma Revolve que vos traz o Mucho Flow. A energia post-hardcore de antigamente foi reconvertida em tons mais negros, mas garridos, em toques góticos que só servem de ponto de partida para linhas de baixo certas e baterias incertas, sem hesitação, onde entram as guitarras cheias de cor. Não há contexto em que um trio de Óscar Silva (Jibóia, Tormenta), Ricardo Martins (Fumo Ninja, Tormenta) e Bráulio Amado (Adorno) não caia bem.
Um dos nomes em maior ascensão na cena eletrónica portuguesa, Rita Silva não se fica por manipulações simples de som e eleva a sua abordagem à exploração do instrumento — ou não fosse a sua música indelevelmente marcada pelo uso de sintetizadores modulares, técnicas de composição generativa e uma abordagem reativa ao caminho que as frequências geradas abrem para si. Em cada peça sua, uma linha melódica é muito mais do que uma direção, mas um logaritmo de possibilidades a explorar, que se desdobram em novos momentos, texturas e harmonias. Uma estreia no Mucho Flow por demais adiada, mas por ora resolvida.
Como toda a moda, com os seus momentos cíclicos, nem tudo o que se perde é bom, mas também nem tudo o que fica para trás é de esquecer — e a memória da dupla estado-unidense é positivamente seletiva para não deixar morrer o encontro acidentado entre a pop, a witch house e as suas tendências shoegazing. Desde 2021, têm trazido os géneros para um contexto mais maximal pós-hyperpop, onde a saturação ganha uma nova força de expressão para ideias simples, mas com profundidade e sons texturados. Toda a sua música acontece no mesmo ambiente super influenciado pela internet, onde qualquer software de criação se torna numa potencial meme machine, de meta-referência, familiaridade, mas também para se esboçar novas narrativas. São essas histórias, de deja vu, que vamos viver no Mucho Flow.
Estranhos e teatrais, os sons dos Still House Plants faz-se na simplicidade com que constroem os elementos instrumentais, na minúcia com que tratam um par de acordes, e na maneira como os recortam com a bateria, sobre a qual a voz de Jessica Hickie-Kallenbach se propaga e ocupa todos os espaços que aparentemente existem na sua música. Apesar da natureza sincopada e recortada das várias composições, onde o silêncio é tão bem e repetidamente aplicado, a forma esparsa com que todos os sons são aplicados criam construções robustas, emotivas, verdadeiras e, mais importante, frescas. É neste lugar que esperávamos ver a contemporaneidade a viver, mas apenas encontramos lá Still House Plants.
Os mais atentos na cena dos ritmos latinos não vão entrar na pista de dança que Toccororo vai incendiar de cabeça baixa, mas os demais vão perceber a magia que a batida de origem dancehall e dembow tem nos corpos e espíritos. Não será por falta de batida acelerada que a DJ cubano-espanhola não vai dobrar joelhos, articular tornozelos, prostrar costas e ativar glúteos de forma desenfreada. Se dúvidas restam, vejam o currículo e preparem-se para fazerem as devidas vénias no final do seu set: passagens por festivais como Dekmantel e Sonar e atuações em clubs como Panorama Bar. O rasto de lascividade musical fala por si.
Poucas são as bandas que levam a ideia “sem limites” do punk literalmente, mas parece que os University frequentaram o ensino superior da existência onde aprenderam que a ética DIY só se consegue fazendo. E fazendo vão eles, debulhando formatos com as guitarras, e usando-as para fazer em meia dúzia de minutos o que, na história do rock, precisou de várias bandas e décadas para se fazer. São a cadência punk em modo hardcore, pós e pré, a verve noise dos tempos tardios, a matematicidade que surgiu em contra-corrente, e até os momentos mais desesperados dos tempos screamo, tudo numa única roadtrip com um quarteto.
Violet é bem mais do que uma DJ e produtora, é alguém que conseguiu transformar o conceito de fazer casa num movimento de erigir de facto fundações de abrigo — para identidades singular e atípicas, para clubbing inclusivo e para expressões de raving que Lisboa parecia não poder receber de outra forma. Através dos pratos, do estúdio, do projeto rádio Quântica, ou do club Planeta Manas que co-lidera com um coletivo de mentes e almas semelhantes, Violet tem sido uma força transformadora da cultura noturna da capital. Mais recentemente, abraçou as batidas quebradas e o furor descontrolado do jungle e do drum’n’bass para se tornar numa das suas mais proeminentes embaixadores em território nacional, e tem-no feito de forma incólume. O calçado terá de ser confortável, ou ficará confortável depois do seu set — não há sola ou soalho que aguente um set seu sem ceder.
Ainda estamos a percorrer a última edição do Mucho Flow nas nossas audições, e já se preparam novos mergulhos na interseção entre o contemporâneo da música experimental e o futuro da canção pop. Como sempre, o festival propõe a descoberta como principal motor, passando por diferentes espaços da cidade minhota com bandas sonoras que vão desde o techno e a bass music até à hiperpop e ao folk, tudo nas suas expressões mais recente e principalmente por via de estreias em território português.
Apontado para os dias 31 de outubro, 1 e 2 de novembro, o Mucho Flow passa pelo CIAJG – Centro Internacional de Artes José de Guimarães, pelo Teatro Jordão, pelo CCVF – Centro Cultural Vila Flor, e pelo Teatro São Mamede com os artistas de hoje que vão povoar as nossas playlists de amanhã.